O Triunfo do Eletrodoméstico
A segunda liga, a política, o voto, os jovens, o YouTube. É misturar todos os assuntos em cima da mesa como se faz naqueles restaurantes chiques de petisco onde depois dizem: “o conceito é partilhar”.
Há um programa de grande sucesso no YouTube onde os candidatos às legislativas marcam presença sob a condição de “não serem políticos”. Uma ou outra vez, entre a estreia do programa há um ano e a atualidade, lá se vai ouvindo o apresentador dizer “ah, estás a ser político agora, não podes ser político”. Como se tudo aquilo que fazemos na vida, o que gostamos, os hobbys, a forma como nos deslocamos, o local onde vivemos, o clube que apoiamos e de que forma com ele nos relacionamos, não sejam tudo consequências de visões políticas. Mas isso não é para ali. Ali não é para ser político. É supostamente para ser “uma pessoa normal”, partindo do princípio, julgo eu, que as “pessoas normais” não refletem sobre a consequência de escolhas de natureza política no seu dia-a-dia. Também não se pode ter uma linguagem um pouco mais eloquente. Que se leva advertência. Não é para falar assim, ninguém fala assim. Então diz antes assado. Lá vai a teoria de que aquele programa “humaniza os políticos” quando na verdade os transforma em algo que não são.
Dizem-me que é um programa de bastante mérito porque “chega aos jovens”. Porque, já se sabe, os jovens “não querem saber de política”. E lá fico eu, cometendo aquele sacrilégio de “pessoa normal” a refletir sobre política, a questionar-me se será isso mesmo. Porque os jovens têm interesse em política quando levam cargas policiais na luta contra as propinas. Os jovens têm ação política quando levam para um estádio de futebol uma bandeira da Palestina e acabam identificados pelas autoridades. São jovens os ativistas que tentam por todos os meios chamar a atenção para a emergência climática e algumas acabam despidas numa esquadra da polícia para onde foram levadas.
E portanto lanço a pergunta na humildade: os jovens não se interessam sobre política ou os jovens não estão a interessar-se sobre política da forma que vocês querem que eles se interessem sobre política? Que é como quem diz cada um na sua casa, individualmente, a consumir um conteúdo na Internet que pode ser monetizado, analisado, métricas a torto e a direito, e onde preocupações, princípios e valores de natureza ideológica ficam à porta ou, quanto muito, são utilizados como punch line de uma graçola.
Talvez seja relevante chegar a este ponto para esclarecer que nada me move contra o apresentador que é em simultâneo – julgo eu – o autor do formato. É alguém a ganhar a vida e a ser competente naquilo que sabe fazer. Há uns tempos, cruzei-me com uma série no YouTube que traços gerais conta a história de um jovem aspirante a argumentista que está desempregado e o único trabalho que encontra é ser um bot de redes sociais a destilar ódio e narrativa de extrema-direita. Só que o jovem é uma joia de moço. E até divide casa com um colega homossexual a quem mente sobre a sua verdadeira profissão. Então tem uma espécie de vida dupla. Pega ao serviço às 09h e lá começa ele a barafustar contra “o outro”, seja o imigrante, o gay ou o que estiver mais a jeito. Faz pausa para almoço e vai almoçar com o colega de casa, diverte-se, trocam umas graçolas. Volta a pegar ao serviço e lá começa novamente. E isto abriu-me horizontes na medida em que reflito sempre se aqueles perfis do X que todos os dias espingardam ódio para cá e acolá não são na verdade pessoas precárias a tentar ganhar a vida. Na merda, como qualquer um de nós, mas que encontraram naquele emprego, que é pela sua natureza evidentemente precário, uma forma de pagar as contas. Eles próprios simultaneamente responsáveis e vítimas da política-entretenimento onde tudo tem um valor muito relativo e com tanto aconselhamento de agências, treinos e perguntas ensaiadas, ninguém é na verdade quem queria ser. E eu queria ser ninguém, como cantava o Manel Cruz.
Há quem sossegue ou relativize argumentando, provavelmente com razão, que não é num programa de YouTube que alguém vai decidir o seu voto, ou se isso eventualmente acontecer é numa percentagem residual de votantes. É provavelmente certo, embora esta política-entretenimento já tenha brindado o país com um presidente de quem ninguém sabia ao certo o que pensava mas que era muito divertido aos domingos à noite. Ou viu crescer um partido à conta de um líder que nasceu do comentário futebolístico e cuja profundidade do pensamento político não diverge muito daqueles tempos onde argumentava que o árbitro era um gatuno e o companheiro de painel um palerma.
E já que viemos ao futebol, esta ideia de que tudo pode ser construído meio artificialmente com um bom guião, uns câmaras e um fotógrafo com jeito para a coisa, e uma equipa talentosa a fazer cortes para as redes sociais, também vai vingando ao ponto de quem não conhecer a realidade da vida concreta fica convencido que as coisas são como se apresentam. Com tanto backstage, podcast, camisolas vintage, vídeos promocionais, slogans e hashtag, quase que nem se dá conta de que a última jornada da Segunda Liga, que decide subidas, playoffs e descidas, começa a jogar-se a uma quarta-feira às 20h15, prolonga-se pela quinta-feira às 18h45 e 20h45, seguindo alegremente pela sexta-feira às 20h30 até chegar a sábado. Claro que no fim, depois de feitas as contas, há o “conteúdo” do sentimento, a festa do balneário, as lágrimas de tristeza, e vai ficar para outra reflexão o motivo pelo qual no país do “futebol és tu” e coisas que tais, as “famílias” e os “jovens”, em nome de quem tanto se fala e decide, ficaram impedidos de assistir ao culminar de uma época porque o jogo é fora e a escola acabou às 18h, os pais saíram do trabalho às 19h e ainda era preciso ir buscar a irmã à Natação.
- Ah, estás a ser rabugento. Não podes ser rabugento aqui.
Também no futebol os “jovens” vão sendo entretidos por “influencers da bola” que evitam meter o dedo na ferida seja em relação ao tema que for – compreendo o pão na mesa, etc, tudo certo – ou vão escutando os mais antigos dizer “no meu tempo nos estádios não se pagava até aos 12 anos, íamos para a porta e pedíamos a um adulto se nos deixava entrar com ele”.
- Estás a ser boomer, não podes ser boomer aqui.
Lembro-me do episódio 6 do Tó Madeira com um convidado que partilhou as suas memórias de quando tinha sete anos e assistiu nas Salésias ao para ele inesquecível Belenenses-Sporting de 1955. E imagino um Tó Madeira qualquer daqui a muitos anos a desafiar uma pessoa então já com idade avançada a partilhar semelhante registo. “Então, olhe, na altura havia um canal chamado CMTV que tinha quatro pessoas a olhar para uma câmara enquanto dava um jogo e nós íamos tentando decifrar pelas expressões faciais deles como estava a ser o jogo. Nunca mais me esqueci desse jogo memorável, um dos comentadores tinha um colete lilás com uma camisa vermelha”.
Uma época passa, ganhou este, para o ano a ver se ganha aquele, e os problemas renovam-se como se renovam as temporadas. Nada se discute, debate, pensa, é entretenimento, o puro futebol, dos figurantes, das mascotes, das métricas, dos génios da comunicação que a páginas tantas são eles próprios os protagonistas em vez do clube (“adm que rei”).
Vai-se apimentando tudo com umas polémicas servidas por três clubes que têm entre eles mais em comum do que se julga.
- Já viste a forma como o clube x veio aqui jogar? Até comiam a relva.
- Epá não me digas, tipo o quê, os gajos queriam ganhar o jogo?
- Sim, vieram aqui jogar para ganhar.
- Eu realmente já vi tudo neste futebol, então agora um clube vai jogar a casa do outro e tenta ganhar!
- Não é isso, é que com o x eles não jogaram assim.
- O quê, um clube que está a meio da tabela tem jogos bons e outros menos bons, a audácia desta gente!
E volto a sintonizar o programa do YouTube a tempo de escutar o apresentador dizer a um candidato o seguinte, depois de ele confessar ser adepto do Benfica mas por motivos da sua vida ter também simpatia pelo Estoril e Vitória:
- Oooohhhh então realmente faz sentido, esses são clubes normalmente associados a serem muito amigos do Benfica. Só falta dizeres que gostas do Belenenses também, que é outro.
E este futebol, é um bom partido?
* A utilização do Homem do Bussaco a ilustrar este episódio não vincula a opinião do mesmo. Trata-se de um frame do programa Copa Aleixo roubado à má fila sem autorização prévia.